Descrito como um bebé birrento, chorão e com uma relação muito difícil com a comida na hora da alimentação, foi a partir dos 10 meses que os sintomas da doença atingiram a sua expressão máxima. Vomitava praticamente tudo o que comia, tinha a barriga muito dilatada, as fezes eram pastosas e com um forte odor e apresentava uma fragilidade cada vez maior. Com sucessivos diagnósticos errados, fruto do desconhecimento generalizado sobre a doença celíaca (DC), a minha situação estava a atingir um ponto de extrema gravidade, quando surgiu a hipótese do meu problema estar no glúten. Como poderia um quadro clínico tão grave, ser resolvido com uma simples dieta (?!) – foi a principal questão com que os meus pais se interrogaram e que os mantinha intranquilos quanto à sua resolução, depois de mais este diagnóstico. Mas este era o caminho. Progressivamente, com a eliminação do glúten da alimentação, recuperei e tornei-me numa criança perfeitamente normal. No entanto, há 20 anos atrás, o conhecimento da comunidade médica sobre a DC era muito reduzido e por indicação do meu pediatra, aos 4 anos iniciei uma alimentação sem restrições para “se observar como o rapaz reagia.” Com a informação, errada, que a doença tinha um carácter transitório, a indicação médica foi posta em prática e sem sintomas visíveis, a DC parecia não ser mais que um “fantasma” que tinha aparecido num pesadelo infantil, mas que estava distante e já fazia parte do passado.
Como o caso, aparentemente ultrapassado na altura, transformou-se numa “doença da família”, pois indirectamente atingia aqueles que estavam mais próximos de mim, o seu nome permaneceu presente em todos que nos rodeavam. Após alguns anos a fazer uma alimentação sem restrições, a minha mãe é confrontada com uma notícia lida por uma amiga sua sobre a DC. Tratava-se de uma reportagem sobre esta doença com uma entrevista do Dr. Paulo Ramalho, onde este afirmava que a DC era para toda a vida. Com o alarme a soar é marcada uma consulta no Hospital de Santa Maria e efectuada a respectiva biopsia…diagnóstico: Doença Celíaca! Com 9 anos, o antigo “fantasma” ganhava de novo vida e passava a ser mais uma parte da pessoa que sou. Com uma naturalidade atenta que hoje percebo ter sido fundamental, pais, irmã e avós encararam a DC como aquele cuidado extra que teria que se ter aquando da alimentação. Sem cenários catastróficos, fados hipocondríacos, todos os que me rodeavam foram informados desta minha particularidade. Assim, restante Família, Amigos, Escola e Desporto sabiam que na hora da comida, o glúten não podia estar presente. Talvez a vivência passada com DC tenha dado a mim e à minha família, as estratégias para que o retomar da dieta tenha sido natural. Agora, com a distância dos meus 25 anos, reconheço que a forma como encarámos este novo capítulo foi fundamental para a forma como vejo a intolerância ao glúten. Atento mas sem condicionar as minhas opções, a responsabilidade sobre a minha alimentação sempre foi algo que assumi e tornou-se muito importante para o cumprimento da dieta.
Mesmo com a perfeita consciência da minha particularidade, nem sempre foi fácil aceitá-la. Os aniversários de amigos, idas a Mcdonalds, os acampamentos, viagens, tornavam a DC num “fardo”, que com a adolescência aumentou de dimensão. E se numa primeira fase, a família teve um papel fundamental, nesta de maior rebeldia, os amigos, assumiram destaque. Compreendendo a minha “diferença”, sempre tentaram minimizar as minhas possíveis limitações, ajudando-me a ultrapassar as dificuldades que surgissem. Sei que neste meu trajecto, a família e os amigos foram fundamentais e aproveito este meu testemunho para agradecer a oportunidade que me deram de ser o que sou!
Hoje, com 25 anos, com um passado cheio de momentos bons e em que a DC nunca foi factor de exclusão dos mesmos, quero transmitir a outros, através deste texto e da minha colaboração na APC Jovem, que a DC faz parte de quem a tem, que deve ser assumida plenamente, de forma responsável mas não obsessiva, que deverá dar-nos oportunidades e não excluir-nos delas, que pode ser uma coisa positiva e não negativa. Termino com um apelo a todos os celíacos, familiares e amigos para se aproximarem mais da APC e apoiarem-na como puderem.
Abraços
João Pereira Rocha